quarta-feira, 30 de outubro de 2013

CABOCO NA CASA DO BARÃO (2)

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Praça Independência, cidade de Montevidéu - República Oriental do Uruguai


TRAVESSIA

Um belo dia, no ano de 1982, lá estava o caboquinho do Fim do Mundo, da vila Itaguari (Ponta de Pedras), ilha do Marajó, a desembarcar no aeroporto internacional de Montevidéu (Uruguai). Por subjetivas contas, a viagem ao Uruguai ligou para mim a foz do Amazonas à foz do Rio da Prata deixando atrás séculos de história daquelas famílias imigrantes da antiga Ibéria, que José Saramago conta em "A Jangada de Pedra". 

Claro que o acontecimento, involuntário, não tem importância para ninguém mais que este curioso viajante do mundo que gosta de atravessar as fronteiras da literatura e da história, misturando assuntos futuros e pretéritos, a fim de vencer a solidão de sua ilha de esquecimento e chuva, na imaginária Vilarana, que ele mesmo inventou sob tímida impressão de "Santa Maria", da ficção peregrina do exilado uruguaio Juan Carlos Onetti. 

Vivíamos então os últimos dias da Ditadura com o terror da Operação Condor a rondar os caminhos de terra, mar e ar e eu já queria comprar "Memória do Fogo" de Eduardo Galeano enquanto marchas e panelaços precorriam "calles" e "ramblas" da capital do Uruguai. Gastei a sola dos sapatos andando de livraria em livraria que, em Montevidéu, não são poucas. No fim da tarde a franqueza de um livreiro me desenganou da procura dizendo ele, mais ou menos, assim: "Galeano no se vende aquí, por problemas políticos"... Em compensação, mandou-me ele esperar um poquito e desceu ao porão donde voltou trazendo um usado livro de contos do autor com título de "Vagamundo", o qual deu-me como regalo. Muchas gracias... Havia cumplicidades no ar platino frio e luminoso naquele fim de tarde. A recessão econômica cavava seu último poço e apressava o parto da nova democracia pelo Cone Sul. Na Argentina o nome Alfonsin era uma luz no fim do túnel...

Mais que a Onetti, de quem de fato não li além de uma resenha crítica; o caboco escrevinhador da "vila que nem vila era" andou mais perto de arremedar o engenhoso "prologomeno" ou heresia judaizante do "payaçu" dos índios, Padre Antônio Vieira. Euzinho, por presepada pura e heresia amerindizante, a fim de chatear a paciência de eruditos acadêmicos ("de las epidemias de horribles blasfemias de las Academias,¡líbranos, señor!", Rúben Dario) e o imperador da língua portuguesa a fim de burlar a terrível censura do Santo Ofício com aquela imaginosa e inacabada obra chamada "História do Futuro" por capa da verdadeira e infinita obra - prenhe de realismo-mágico -, onde a utopia ecumênica fez morada e entronizou o Menino Jesus no trono do quinto império do mundo. 

Parece brincadeira do maravilhoso acaso, mas minha tia Lodica havia um sítio denominado Menino Deus no Igarapé Paricatuba, lugar da fictícia fazenda Marinatambalo e ponto de partida do romance "Marajó", do tio Dalcídio com a odisseia de sua Criaturada grande... Foi, exatamente, a obra "Marajó" que minha avó e mestra na história oral da família marajoara, Sophia, deu-me a ler pela primeira vez: com a cambaleante leitura de iniciante mal letrado caíram-me as escamas dos olhos. Vi, pela primeira vez na vida, a dita cuja criaturada, dentre a qual sempre estive e me acho agora mais que nunca. Da imaginação acesa pela incipiente leitura de o "Marajó", conservado com zelo no baú de minha avó, desciam canoeiros dos sítios com carregamento de açaí para a feira do Ver O Peso; vaqueiros corriam campos infinitos a galope para pastorear o gado do vento, a ralé da vila mourejava a carregar lenha para fogão da casa dos ricos, fazer carreto, capinar rua, pescar, caçar, "tirar" borracha de seringais panemas...

Prossegui o curso eventual literário por "Os Sertões" de Euclides da Cunha... E já queria eu escrever soneto pior do que a emenda para vencer a timidez e conquistar a primeira namorada... em papel de embrulho com caneta Bic. Fiz calo nos dedos como um diploma. Neste longo caminho pelas beiras da história, por acaso, fui procurar Galeano ao longo da avenida 18 de Julio, em Montevidéu. Por acaso, no extremo-sul encontrei o gauchismo transfronteiriço eivado de galeguismo arcaico de "Tacuruses", de Serafim Garcia, publicado no Uruguai um ano antes de meu nascimento.

Para o menino que sonhava saber quem inventou o mundo, aqueles quarenta e cinco dias na antiga província Cisplatina foram um descobrimento estupendo numa viagem que está longe de terminar. Da qual o respeitável público hoje é informado depois de 31 anos. Prova de que Gabriel Garcia Marques teve razão quando disse ele que, em tempos modernos, o corpo vai de avião a jato mas a alma, coitadinha, vem de caravela... Neste caso, chega até aqui em igarité.
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igarités, antigas canoas à vela, que faziam transporte de carga e passageiros entre a ilha do Marajó e a cidade de Belém do Pará. 


NA BEIRA DO PRATA VISITANDO A ALMA IBERIANA
Tudo aquilo que antes em outras plagas e mares do velho mundo fora ibérico, evoluiu a iberiano no continente latino-americano sob a luz do Sol profundo e da constelação do Cruzeiro do Sul com seus imperadores ameríndios e reis do Congo emigrados ao Novo Mundo, que nem a Família Real portuguesa no Rio de Janeiro. Claro que os brancos da família como os deuses antigos deveriam estar loucos... Portanto, urge mestiçar o Barroco custe o que custar.

Quando um colega da chancelaria "vazou", propositadamente, poemas cometidos pelo caboco para consumir o ócio do estagiário uma diplomata de forte estilo castelhano veio até à tesouraria onde o mesmo dava expediente e indagou: "o que você está fazendo no Itamaraty?". Aquilo tanto poderia ser elogio ao poeta bissexto, quanto um sutil puxão de orelha ao exibido servidor... O mais interessante viria depois quando, inesperadamente, o próprio Chanceler que se encontrava em missão oficial no Uruguai, visitou a Embaixada e topou por acaso com o caboco, o qual conhecera por acaso em Belém, na Comissão de Limites. Fosse como fosse, visto a "intimidade" do estagiário com o Chanceler Saraiva Guerreiro, daquele momento urdido pelo famoso acaso em diante o frio relacionamento de praxe com o pessoal da embaixada mudou da água para o vinho. Pena que o estágio estava perto de acabar, como lamentou o Senhor Embaixador até ali sem ter tido ainda, dizendo ele; oportunidade de cumprimentar o tal personagem filho mestiço da necessidade com o acaso.

Foram curtos e interessantes quarenta e cinco dias de estágio do caboco amazônida ao cargo de Oficial de Chancelaria na Embaixada do Brasil no país platino. Porém se o caboco aqui presente tivesse ele um fiapo do talento de um Joice, por exemplo, ou a perícia da aquanarrativa de Dalcídio, que escreveu "Primeira Manhã" em um único dia; a estada de Montevidéu daria panos pra mangas de um razoável romance. Lá aprendi de um velho lobo do mar por que razão Pinzón batizou o Amazonas, que não existia ainda em 1500; com o risonho nome de "río de Santa María de la Mar Dulce"... Santa Maria do Mar Doce. Dizendo-me ele, a bordo de uma animada churrascada em casa de amigos, que para os marinheiros de língua castelhana o Mar é mulher. Faz sentido... A água é um elemento feminino por excelência e os povos ribeirinhos sabem disto mais que ninguém.

A primeira viagem de travessia na minha vida fiz na barriga de minha mãe. Que nem o profeta Jonas dentro da baleia bíblica. Por acaso, meus antepassados índios do Amazonas (segundo Stradelli) acreditavam que os primeiros seres humanos vieram ao mundo no bucho de uma cobra-canoa. Naquele tempo, o transporte entre a ilha do Marajó e a cidade de Belém era feito, exclusivamente, em canoas à vela, as famosas igarités. Sou o primeira filho de um casal marajoara. Ele filho de índia catecúmena da aldeia de Mangabeira (Ponta de Pedras) casada com um caboco descendente de portugueses e ela filha de imigrantes da Galiza, de Soutomaior, em Pontevedra; chegados no Pará após a guerra-civil na Amazônia, dita a Cabanagem (1835-1840); para repovoar a dita ilha da boca do Amazonas com outros galegos da diáspora galáico-portuguesa. Certa vez, perguntaram-me se tenho parentesco com o doutor Dráuzio Varella. Quem sabe? O que sei é que o nome de minha bisavó asturiana era Micaela Varela e meu avô Francisco (aliás Celestino) Pérez Varela nasceu na Galiza. O duplo "l" que carrego ficou por recordação do cartório Figueiredo, em Belém do Pará. 

Nasci, no dia 30 de outubro de 1937, na maternidade da Santa Casa do Pará como muitos de meus co-ilhanos, cujas mães tiveram complicação na hora do parto e na hora H correram depressa a pedir socorro à Santa Casa. Na verdade, no caso de minha mãe houve prevenção, pois minha avó morreu no parto de meu pai. Com tempo e boa maré a bordo de igarité eis como começou esta estúrdia história do caboco, seu criado...

Por acaso, a descoberta do Uruguai foi para mim como encontro da Galiza avoenga no ultramar. Um mundo de comparações e descobrimentos nesta outra América que se oculta pelas ilhargas da História. Não teria lá chegado naquele dia sem ajuda do acaso e o concurso de amigos. Primeiramente, o então Secretário Palm que levou-me de Belém de volta a Brasília e insistiu comigo para, pela terceira vez, tentar o concurso para categoria de Of. Chan. Foi crucial a boa compreensão do colega Roberto Revoredo Varela, que não é meu parente, mas um excelente amigo. Foi ele quem, no último minuto, fez minha inscrição ao concurso. E, mais ainda devo agradecer sempre à Secretária Edileuza que, ao ver minha desistência à prova de datilografia, correu dizendo que fizesse a prova de toda maneira. Não fosse isto, com certeza, tudo isto não teria acontecido.

Não ficam só por aí meus agradecimentos pela imprevista viagem ao Uruguai em 1982. A casa do Barão nunca foi um mar de rosas... Entretanto, com a Ditadura a arraia miúda andava na linha e com o coração na mão, sobretudo se o servidor fosse "quarto secretário".  Ou seja, o tal de Of. Chan. intermediário entre Funcionário (diplomata) e Servidor (administrativos). Uma estória itamaratyana contava que o ex-Presidente Jânio Quadros num mau encontro com diplomata no exterior teria determinado a criação desta categoria, originalmente privativa de pessoal de nível superior. Com a renúncia do ex-presidente entraram os oficiais de chancelaria a perder prestígio e numa reforma administrativa foram rebaixados ao nível médio. Foi assim que os Oficiais de Administração já de nível médio desde o início foram rotulados como Agentes Administrativos e os Oficiais de Chancelaria ficaram praticamente equiparados aos primeiros.

Meu colega Bernardo (nome fictício) era negro, nordestino e estudioso de cultura árabe. Colecionava rosário de preconceitos sofridos dentro e fora da Casa... Quando ele veio a saber que o haviam mandado ao Uruguai desconfiou estar sendo vítima de constrangimento ao ser enviado a um posto predominante branco. Veio ele procurar-me para saber aonde eu estava indo, disse-lhe que iria para a Guiana (ex-inglesa). Então me perguntou se eu trocaria de posto com ele caso houvesse uma permuta. Disse-lhe que não faria nenhuma objeção caso ele fosse tratar do assunto com a famosa DP. Mais uma vez o Secretário Palm entrou em ação e foi assim que meu colega Of. Chan. negro foi a Georgetown e o caboco aqui presente a Montevideu.

(a seguir 3ª parte) 

domingo, 27 de outubro de 2013

CABOCO NA CASA DO BARÃO

exposição comemorativa dos 80 anos da Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites


CABOCO NA CASA DO BARÃO

Meu ex-chefe mandou-me convidar para solenidade na Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (PCDL). O convite: O Ministério das Relações Exteriores e a Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites tem a honra de convidar para a entrega da Medalha “Euclides da Cunha”, em homenagem aos demarcadores da Fronteira Norte.”. Não é todo dia que um caboco da ilha do Marajó recebe convite como este. Ainda mais que faço jus à medalha comemorativa dos 80 anos da PCDL, para mim mais importante ainda por que fará par à medalha “Pedro Teixeira”, atribuída pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) a seus membros. 

Fiz parte do IHGP, nele tendo sido admitido durante o curto tempo em que foi, em articulação minha, instalado temporariamente na PCDL para trabalhos de recuperação do Solar do Barão de Guajará, sob supervisão do IPHAN. Do velho Silogeu paraense afastei-me sem quebra de amizade nem de respeito. Simplesmente minha passagem pelo solar do Barão de Guajará estava de bom tamanho. Tenho horror a direitos cativos e medo da eternidade. Deixei espaço a melhor figurante da cátedra de Paul Le Cointe e me deixei desligar, tranquilamente, como manda o estatuto. Fiquei com a amável lembrança do presidente do IHGP. Falecido na altura dos seus oitenta e tantos anos de idade lutando por recuperar o arruinado Solar contra a indiferença da intelectualidade local para revitalizar a instituição e contra a insuficiência renal que o ia matando inexoravelmente. Era comovente vê-lo chegar àquele solar em ruína, semelhante a um naufrágio no qual o comandante se recusa a abandonar o navio, amparado por seu filho Manoel Gama diretamente da sessão de diálise para reunião de diretoria temperada de infinitos causos marajoaras. Era o Dr. Guaraciaba Gama, fiel zelador da canhapira, contemporâneo de Dalcídio Jurandir e suposto personagem do romance na figura de Tales de Mileto, o menino proprietário do único velocípede da vila de Cachoeira invejado por Alfredo, alter-ego do autor.

Eu também com as mazelas da velhice e os curtos proventos da aposentadoria a contemplar que o velho Silogeu carecia de sangue novo e mudança de mentalidade, que felizmente agora está em curso com uma nova diretoria. Ademais, o velho estatuto do silogeu impõe contribuição mensal aos confrades, quando na verdade a instituição de interesse público não poderia jamais desta maneira suprir suas reais necessidades de manutenção. Acredito que outros tantos na mesma disposição também pegaram bilhete azul e espero que novos membros encontrem apoio do poder público com dispensa da ficção das mensalidades. Abolição que não defendi quando lá estava a fazer dificultosa figuração, obrigado a ir e vir no trânsito infernal de ponta a ponta da cidade, para não advogar em causa própria. Mas penso que, para constar, é hora de manifestar aquela opinião de outrora.

Neste momento, o ex-confrade do IHGP quer expressar gratidão aos que o acolheram no Silogeu, notadamente o falecido presidente Guaraciaba e o amigo Pedro Rocha, registrando por este meio apreço à medalha “Pedro Teixeira” recebida em cerimônia no mesmo auditório da PCDL, de gratas memórias, onde irá acontecer a entrega da comenda Euclides da Cunha. O que o faz lembrar, inclusive, que ele foi um dos narradores do documentário “Cariua-Catu, a Grande Expedição de Pedro Teixeira”, em co-produção da TV Cultura do Pará com Portugal.

FRONTEIRA NORTE
demarcando e aproximando a Amazônia
PRIMEIRA COMISSÃO BRASILEIRA DEMARCADORA DE LIMITES

Ocorre-me pensar estas coisas quando chega em casa, na Marambaia, o honroso convite do amigo Dauberson Monteiro da Silva, Engenheiro Cartógrafo, sucessor na PCDL de nosso legendário mestre Coronel Ivonilo Dias Rocha, e me faz escrever estas linhas de memória e gratidão.  Dauberson é o primeiro dirigente civil em 80 anos da PCDL na linha sucessória desde o Almirante Braz de Aguiar que dá nome ao Auditório, foi aluno de cartografia do Coronel, no Rio de Janeiro. Homem do Centro-Oeste o engenheiro cartógrafo diretor da PCDL, como seu mestre cearense Ivonilo cuja última vontade foi ser enterrado junto a um marco de fronteira onde está, no limite entre Tabatinga (Brasil) e Letícia (Colômbia), tem o gosto pela nova fronteira consolidada que prima pela integração dos países amazônicos na União das Nações da América do Sul (UNASUL). Fronteira que aproxima os países vizinhos, longe de os separar como ao tempo das colônias com as capitais longe do sertão voltadas para a Europa e de costas umas para as outras. 

A cidade de Belém do Pará, cognominada Feliz Lusitânia; nunca deve esquecer que ela foi berço do Presépio em acordo guerreiro entre militares portugueses e índios de nação Tupinambá, em 1616, carregada pelas armas e barões assinalados para o Norte do Brasil desde Nova Lusitânia (Olinda-PE) para expulsão dos estrangeiros inimigos, mas que ocultava por contradição o acordo de paz dos índios do Marajó, sob tutela legal da Companhia de Jesus tal qual o SPI e a FUNAI; no limite da fronteira de Tordesilhas. Cuja pacificação, parece claro agora, era exigência sine qua non para formação do uti possidetis de 1750, na vitoriosa tese da diplomacia do luso-brasileiro Alexandre de Gusmão, que se acha na gênese do país do Futuro.

A extensão do Nordeste para o Norte tem a dimensão da utopia selvagem daquela Yby Marãey ("terra sem mal") - lugar encantado onde não existe fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte -, assim entre a PCDL com seu emblemático marco do Tratado de Madri (1750) e o Museu de História do Estado do Pará (MHEP), no Palácio Lauro Sodré; existe uma ligação histórica que remete à Fonteira Norte de suas origens em Pernambuco até, recentemente, o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), em 1995, com sua sede em Brasília. 

Portanto, a Medalha "Euclides da Cunha" tem a ver com esta longa história de integração continental, entrelaçando índios e mamelucos da invenção da Amazônia ao anônimo surara das campanhas demarcatórias até a alta diplomacia do Barão do Rio Branco e seus homólogos nas respectivas Chancelarias sul-americanas.

Ainda mais feliz a ideia da comenda quando me dou conta de que está prevista a vinda de Brasília a Belém do Coordenador-Geral das Comissões Demarcadoras de Limites, Ministro de carreira Márcio Fagundes; e do Subsecretário-Geral da América do Sul, Central e Caribe, Embaixador Antonio José Ferreira Simões. Não posso deixar de lembrar do jovem economista da UNB e estudante do Instituto Rio Branco Antonio José que conheci em animadas conversas em fins de expediente com o então chefe da Divisão de Fronteiras (DF), Primeiro Secretário Paulo Roberto Palm; que nos daria carona para a Asa Sul num fusca famoso pelas broncas mecânicas e sustos que costumava dar a condutores e passageiros.

Tempos idos e vividos a rememorar numa pequena série do blogue marajoara para compartilhar com os conterrâneos da Ilha do Marajó as aventuras do caboco de Ponta de Pedras na casa do Barão do Rio Branco e me fazer porta-voz voluntário de muitos outros servidores das demarcações dos confins da Amazônia ao longo do tempo e do espaço, onde não pode chegar o convite e a condecoração em apreço: justo eu, o menos merecedor; por acaso sorteado a fazer papel de "Guimarães Rosa" na Comissão Demarcadora ou a ser escrivão de acampamento, contador de causos aprendidos com os suraras. Quem dera! 

LEMBRANÇAS DE UM CANDANGO ADOTIVO
Ingressei no Ministério das Relações Exteriores em 1973, por concurso público para o cargo de Oficial de Administração muito concorrido na UnB, no ano de 1971. Enquanto 1967 foi o ano da minha "morte" psicológica e quase física em Belém, quatro anos depois ressuscitei em Brasília (aprovação completa em exames de ensino supletivo de I e II graus em 1970 seguido de aprovação em quarto lugar no vestibular de direito na extinta UDF, em 1971; emprego fixo na Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL), requisição pelo Ministro Jarbas Passarinho para o MEC). 

Depois de um tempo difícil após a mudança, achei amigos e consegui emprego onde desfrutei de excelente ambiente de trabalho e bom salário na matriz da estatal COBAL, todavia me faltou tempo para concluir o sonhado curso universitário duramente conquistado. Tive, então, que pedir ajuda a Jarbas Passarinho, que me conhecia ligeiramente de priscas datas no interior do Pará e oferecera-me bolsa de estudo no exterior. Fui requisitado ao MEC, mas ao soar do gongo finalmente o MRE me convocou a tomar posse (bateria de exames de saúde, teste psicológico e psiquiátrico, entrevista eliminatória com o poderoso Ministro chefe da Divisão do Pessoal, uma gafe de estreia revelando falta de intimidade do concursado com a língua de Camões, não seria a primeira nem a derradeira, valeu admoestação tipicamente diplomática de chegada)... 

Deus me livre do homem do SNI no Itamaraty, que botou o poetinha Vinícius de Moraes pra fora da Carreira; sonhar com a infiltração de um comunistazinho nortista na casa do Barão!.. Ansioso me apresentei à Divisão do Pessoal (DP) para o primeiro dia de trabalho. Mandaram-se assinar o "livro" de ponto e falar ao Sr. Carlos (era um mulato baiano boa praça), perguntei o que deveria fazer. E ele, "já assinou o ponto?"... "Já sim, Senhor". "Pois - retrucou ele - fez a coisa mais importante". 

Boa recepção, finalmente eu passava a ser de direito e de fato servidor efetivo do Itamaraty. Mas, uma dramática redução de salário me esperava no fim do mês, na ordem aproximada de 40% em relação à administração indireta na COBAL. Bem que minha ex-chefa, dona Iolanda, prima de Dom Helder Câmara; avisou que na administração direta o "índio brabo", como ela carinhosamente me chamava; poderia quebrar a cara... E tudo isto para continuar pagando universidade privada do Senador Eurico Resende em horário noturno, sustentar esposa e filho recém-nascido, mais o custo de aluguel. A corda no pescoço do novato Oficial de Administração, sem possibilidade de destrancar a matrícula do curso. 

Foi aí que, por acaso, ao escutar a chefa da seção falar com Belém ao telefone descobri que o MRE havia uma repartição na capital do Pará. Seria possível uma remoção salvadora? Coincidência, a chefa era sobrinha do General Bandeira... O diabo era que a PCDL estava com excesso de lotação com servidores remanejados dos finados SNAPP e SPVEA. Carecia muita conversa, a começar com o sub-chefe Ministro Luciano Rosa. Este acenou com possibilidade de colocar meu nome entre futuros recebedores de casas em construção para servidores que tinham ingressado em Brasília. 

O tempo passou, voltei à carga, o cronograma de entrega das casas em atraso. Então, a surpresa, o Ministro Diégues concordou, à titulo excepcional, em mandar remover o Agente Administrativo da DP (Brasília) para a PCDL (Belém). Disse-me o Ministro em entrevista de despedida com a portaria publicada no DOU, significativamente, que eu seria o primeiro de uma série. Dito e feito... Até aquela data não havia um único caso de funcionário do quadro permanente do MRE em Brasília removido para a PCDL em Belém.

A chegada em Belém, quatro anos depois de uma tristonha partida em busca de melhoria de vida, foi para mim o retorno ao país natal. Brasília será sempre uma boa lembrança para o caboco que se transformou em candango e num dia de 1970 partiu de ônibus pela Belém-Brasília convalescente, desempregado, frustrado depois de ter sido "gente" grande: aos 33 anos de idade, mas sem poder comprovar nem mesmo conclusão de ensino de primeiro grau. Coisas desta nossa vida ribeirinha, sem eira nem beira, à margem da História (no dizer de Euclides da Cunha).

De volta a Belém, março de 1974, vinha eu recém-casado e o primeiro filho do casal, emprego estável, uma casa de família grande e generosa por parte de minha esposa e companheira, estava curado, cursando direito com vaga garantida na Universidade Federal do Pará... 

Primeiro dia na PCDL: um casarão do patrimônio da União na avenida Governador José Malcher (antiga São Jerônimo de muitas histórias da época da Borracha), entrou portas adentro sem topar porteiro, no salão deserto respira-se antiguidade como outrora mutatis mutantes nas casas de seus dois avós em Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. 

A sede da PCDL é uma maravilha de museu com biblioteca de estantes negras cheias de títulos vetustos, mapas históricos, acervo histórico indígena de testemunho do encontro da Comissão com povos originais das regiões amazônicas e no pátio interno do casarão um marco vindo de Portugal para a primeira demarcação de limites na Amazônia, nos termos do tratado de limites luso-espanhol de 1750, que esteve submerso no Rio Negro durante 200 anos. 

Destes marcos históricos trazidos pelo capitão-general, Demarcador e governador do estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado; um deles ficou na cidade de Barcelos-AM, que foi sede das demarcações do Tratado de Madri e teve seu Palácio dos Demarcadores. Outro marco histórico do Tratado de Madri se encontra à entrada do palácio Itamaraty, em Brasília, e dois outros estão em Belém. Destes últimos há o mencionado no pátio-quintal do casarão da Governador José Malcher e o outro está na praça D. Pedro II fronteira ao Solar do Barão de Guajará, sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP). Em qual história de fronteiras e fronteiros, por mais ordinária ou menor que seja, cumpre estabelecer as devidas ligações de tempo e lugar do correspondente roteiro geográfico.

E pensar que um dia, pelo ano de 1964 ou 1965, estando o caboco secretário municipal de Faro em trânsito por Santarém com destino a Belém, em angustiosa dificuldade de achar transporte para prosseguir a viagem; o comandante do N/M "Braz de Aguiar" da PCDL, secamente, lhe disse que "o navio da Comissão de Limites não carrega passageiro"... E o tal caboco, por acaso, viria a ser encarregado do Setor de Administração da PCDL, competindo a ele executar ordem do Coronel Ivonilo para mudar o sistema de transportes da Comissão.  O sub-Chefe Wiltgen Barbosa, oficial de Marinha, havia demostrado como parceria com a FAB seria mais vantajosa para operações de campanha demarcatória, do que o antigo transporte fluvial dos tempos de Euclides da Cunha, Rondon e até mesmo do capitão de Mar-e-Guerra Braz Dias de Aguiar. É claro que toda mudança implica desconforto e tem suas reações contrárias: mas tinham acabado os tempos heroicos das grandes campanhas, que levam até um ano, quase a metade a bordo de canoas, lanchas e navio entre Belém e os extremos da Fronteira Norte. Avião e caminhão numa nova Amazônia mapeada e demarcada estavam a abrir uma nova etapa na história dos países amazônicos.

Com muita conversa, tolerância e teimosia o Coronel Ivonilo promoveu uma mini-revolução, inclusive no sentido do Itamaraty perceber que a PCDL é de fato parte técnica de seu organograma e não extensão do Serviço Geográfico do Exército que havia sido no passado. Como sinal das mudanças técnicas e administrativas das Comissões de Limites a antiga flotilha de lanchas e canoas baseada em Manaus foi a leilão e o antigo Aviso "Tocantins" da Marinha de Guerra, rebatizado "Braz de Aguiar" e transferido à PCDL, que ficava em Belém, foi repassado em convênio entre o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Saúde a fim de auxiliar na distribuição de defensivos de combate à malária pela SUCAM na Amazônia, uma articulação bem sucedidas iniciada por dois pontapedrenses a serviço do Governo Federal, Fernando Malato e este que vos fala; respectivamente, pela SUCAM e PCDL. 

O caboquinho do Marajó parou extasiado no meio do salão do casarão da antiga São Jerônimo a contemplar aquelas relíquias da formação territorial das Amazônias. Sem saber ainda que acabava de chegar numa casa dividida a meio por um inusitado processo administrativo conforme a famigerada lei de Segurança Nacional. Grossas acusações de parte a parte e muitos ressentimentos. Sobretudo, segundo diziam no gabinete, fundas magoas do General Bandeira contra o Sargento Chaves do contingente militar, que se formou advogado sob as bênçãos do superior. E fora "ingrato" o sargento advogado arregimentando entre subalternos indisciplinados acusadores dos principais oficiais da Comissão. Chaves talvez pensasse, diziam os mais moderados, que ao detonar rivais não macularia a figura impoluta do Chefe de todos eles, bons ou maus servidores. 

No final de contas, o tiro saiu pela culatra com a penalização dos acusadores (convertida em perda parcial de vencimentos). Entre mortos e feridos escaparam todos. Mas ficou um enorme calo entre oficiais e subalternos, o velho General não esperou por outro motim na Comissão, disse adeus e foi-se embora pouco tempo depois. Como seria natural a recepção fria ao "homem de Brasília" revelava desconfiança de ambos os lados: quem sabe um informante mandado pelo Itamaraty? O lendamento dos acontecimentos é incontrolável numa repartição como esta, sobretudo quanto se está em acampamentos de fronteira longe de tudo e o conflito entre oficiais e subalternos se aguça. Com o passar do tempo viram que o homem, na verdade, era do Marajó e ali estava tão só para salvar o ambicionado diploma que não pôde pagar em Brasília e controlar despesas de família cujo salário não dava mais para continuar longe de Belém a pagar aluguel de casa. 

Ah, sim! Existia o expediente das missões temporárias, disputadas com unhas e dentes, mas para tanto carecia ser peixinho de chefinho com prestígio junto a chefão que concedesse a missão compensatória dos tempos canibalescos da Inflação. Já viu a dificuldade de um caboco estranho ao ninho... Caminho do feio é por onde veio.

A PCDL era, então, dirigida pelo General Ernesto Bandeira Coelho um dos três chefes da "revolução" que com os coronéis Jarbas Gonçalves Passarinho e José Lopes de Oliveira ("peixe agulha") aparecia no primeiro time da ditadura em Belém. Peixe Agulha era o terror dos "subversivos" e "corruptos", enquanto Passarinho conquistaria o poder político regional visando o plano nacional e o velho general Bandeira, na reserva, era um gaúcho bonachão sucessor do Almirante Braz Dias de Aguiar - ícone da PCDL -, que adorava prosear e frequentar a society... 

Já viu! Vivaz, irônico e rico em trocadilhos (por exemplo, "meu filho, esse pessoal botou os pés onde homem nenhum havia colocado as mãos"), o General gastava horas para despachar o expediente burocrático entremeado com causos fabulosos. E o caboco sonso a querer mostrar serviço racionalizando a repartição... Vaidoso até à medula o Chefe da revolução não rubricava um simples memorandum sem revisar erros gramaticais e apurar o estilo, mas ao contrário do Ministro chefe da DP não humilhava a ignorância de ninguém. 

Num caso mais hilário, o estafeta voltou do banco sem descontar o cheque do General por que este se esquecera de "adoçar" (endossar) o reverso do cheque... Contendo o riso o velho militar assinou e disse "pronto, meu filho já "adocei" o cheque, pode buscar o dinheiro por que estou a perigo".. Fazia isto com espírito jovial. O pessoal, fosse ele dos chamados "oficiais" ou formado por "subalternos", havia genuíno apreço pelo General: já entre os primeiros havia surda competição pela preferência do Chefe da Comissão e entre subalternos temor e animosidade contra os tais "oficiais" considerados puxa-saco... 

A Fronteira Norte de 1494 a 1750 era a Costa Fronteira do Pará na margem oriental da ilha do Marajó. Quem sabe?

Rato de biblioteca, o acervo da PCDL me encantava. Mas ali reinava uma pequena aristocracia como num castelo feudal com seus senhores cortesãos e serviçais. Como podia um pé rapado vir meter bedelho na papelada que parecia timbrada de 'secreto' ainda que não fosse? Eis o conflito latente que espelhava a própria formação de nossas fronteiras ultramarinas. 

Claro que eu não sabia nadinha e só com o tempo, enquanto servidor na Casa do Barão do Rio Branco, o caboco marajoara iria compreender onde ele estava metido desde algumas gerações pregressas. Por necessidade de emprego e instinto de sobrevivência me tornei um aplicado agente administrativo, como meus antepassados indígenas catequizados aprendiam latim para ajudar na missa e também aprender a língua do inimigo. Ou, de outra parte, os antepassados colonizadores aprendiam usos e costumes nativos para melhor passar na colônia. 

Todavia, estava por vir o derradeiro milico da PCDL e com ele uma extraordinária virada de mesa, seu nome: Coronel Ivonilo Dias Rocha, nativo de Caucaia (antiga Soure, do Ceará), nacionalista sincero e humanista convicto. Quando meu prefeito inesquecível morreu, Antonico Malato, escrevi elogio fúnebre publicado no jornal "O Liberal" pranteando a morte do fundador do Círculo Operário Pontapedrense e da Banda de Ponta de Pedras. 

Ivonilo era um apaixonado educador republicano e gostava de reunir o pessoal da Comissão para longas preleções, a tesoureira dona Maria Júlia Chaves se desesperava com os processos de contas a pagar e prestação de contas parados sobre a mesa de trabalho. Ela odiava quando Ivonilo convocava os servidores, oficiais e subalterno, sem exeção; e eu pedia a palavra alongando a coisa. Naquele dia, Ivonilo leu meu elogio fúnebre a Antonico e se emocionou. Era preciso acreditar que ainda há cidadãos honestos e patriotas neste país. Então pediu-me, "quando eu morrer quero que escrevas assim para mim". Promessa cumprida com dor no coração, Ivonilo é meu guru para sempre. Em plena ditadura, ele sabia de minha secreta militância em memória do comunista marajoara Dalcídio Jurandir, meu amado mestre e tio paterno. Reclamava, "publica pois do contrário vais deixar pras minhocas o que aprendeste".

Não há nada pior nas sociedades neocoloniais do que índio metido a gente e preto que não sabe ficar em seu devido lugar. Nem nas repartições de governo servidor que serve ao público em vez de servir a seus superiores hierárquicos. 

Meu colega Maurílio era homem de inteira confiança do General Bandeira desde a fronteira do Setor Oeste, um verdadeiro português, de bom coração; mas com desconforto quando via "subalterno" metido a intelectual. Rivalizava com Dilermando o comando efetivo da Comissão, mas o sábio General dividia os limites entre os dois, de maneira que Maurilio tinha as chaves da sede nas mãos e Dilermando, segundo seus desafetos, era o "reizinho" do campo. Manda a verdade que se diga, entretanto, que sem Dilermando no comando dos trabalhos de campo e os mateiros de costume recrutados em Óbidos seria difícil levar a bom termo as campanhas àquele tempo. O secretário da Comissão implicava gratuitamente comigo, todavia sem me causar mal nenhum; por eu andar sempre com um livro à mão e copiar toda obra que podia consultar. Ele não via que deveria fazer o mesmo, naquela universidade corporativa sem igual. Chamava-me, ironicamente, de "Guimarães Rosa". Se ele chamasse alguém de "poeta", queria dizer um inútil... Um bom homem, afinal de contas, e o que mais sofreu com a despedida do General quando este pediu dispensa da Chefia da PCDL ao MRE.

Quando, com o amigo sargento Alberto Mendes (comandante do contigente militar que dava guarda na sede da PCDL; bacharel e professor de geografia) "descobrimos" que o geógrafo Raja Gabaglia, professor de diplomatas no Instituto Rio Branco, descrevia a "grande oval insular" das Guianas. Tal descoberta do sargento e do agente administrativo chegou aos ouvidos do General que, de bom humor, caçoou dos descobridores da "ilha" das Guianas... 

Na verdade, Raja Gabaglia não estava sozinho, pois o francês Elisée Reclus descreveu abertamente a "grande ilha" das Guianas... E Ciro Flamarion Cardoso não fez por menos. O buraco do problema é mais embaixo: assim como mulher não deveria aprender a ler e escrever, muito menos a votar; também a classe "inferior" deveria ficar longe de saber como se faz salsichas e se escreve a História. 

Quando o General pediu exoneração do cargo de chefe da PCDL ao Itamaraty e o pedido foi aceito, sem choro nem vela, a velha guarda sentiu-se desamparada. Então, apareceu como um pé de vento o tenente de Marinha Wiltgen Barbosa. Este oficial no cargo de sub-Chefe da PCDL foi um susto operacional, embora por pouco tempo quando saiu para o projeto RADAM. Tremendo "caxias", quando tendo eu chegado há pouco em Belém removido com o cargo de Agente Administrativo; o Itamaraty convocou-me para tomar posse do cargo de Oficial de Chancelaria ao qual tivera sido aprovado em concurso interno por ascensão funcional, Wiltgen adiantou que não pediria minha permanência na PCDL, visto não haver (em seu entendimento) lugar para esta categoria nas Comissões de Limites.

Não fiz objeção, visto que na época ambos cargos eram equivalentes de nível médio do Serviço Público sem notável diferença de remuneração entre ambos. Não sei de caso semelhante, para justificar pedido de renúncia ao cargo. Acredito também que sou o único Oficial de Chancelaria do Serviço Exterior Brasileiro com três concurso: o primeiro terminado por desistência de posse do cargo; o segundo feito no atual IFPA em Belém reprovado por falta de décimos da nota mínima em inglês e, enfim, em Brasília o terceiro concurso finalmente aprovado e empossado.

Este terceiro concurso de Of Chan também tem história particular. Eu havia retornado a Brasília a convite do atual Ministro Palm para exercer encargo de secretário administrativo da DP. Ele insistia para que eu fizesse por terceira vez o concurso, mas eu não me interessava. De fato, com a remoção da PCDL para a DF, em 1980, adquiri vaga no curso de economia na UnB e este passou a ser minha maior meta em Brasília. Como Agente Administrativo do MRE minha família estava bem instalada em apartamento funcional e não havia grande diferença entre as duas categoria de servidores. O ambicionado curso de direito eu o havia enforcado numa tarde quente e chuvosa, no recém aberto campus da UFPA no Guamá. O vaidoso estudante temporão sonhou frequentar antiga Faculdade de Direito do Largo da Trindade (praça Barão do Rio Branco, hoje a OAB-PA), minha decepção com a UFPA de então começou com o indeferimento de créditos de disciplinas cursadas na Universidade do Distrito Federal (particular), o que na prática equivalia a voltar ao primeiro ano; na UDF não se estudava Direito Romano e na UFPA era obrigatório desde o básico... 

De mal humor, ensopado de chuva na corrida entre a parada de ônibus e a sala de aula, saltando sobre poças e fugindo da lama do campus ainda em construção, a gota d'água para mim foi a aula maçante de um ex-seminarista, apegado em Aristóteles, que gastou quase todo tempo para explicar a diferença entre o ovo e a galinha... Ou seja, a potência e o ato. A potência da chateação se traduziu, então, no ato de irresponsabilidade pela própria biografia do caboco, que se retirou grosseiramente e jogou o caderno de notas à lixeira não se dando nem ao trabalho de trancar a matricular. Péssimo exemplo. No entanto, em 1976, a UFPA abriu concurso para Tecnólogo em Saneamento Ambiental (no edital, curso de curta duração sem repetência). Lá estava eu entre os aprovados, mas quando parecia que a coisa desta vez teria final feliz; sobreveio-me crise aguda de labirintite. Tive que tirar licença médica e ir ao Mosqueiro repousar com a família. Recuperado, o curso estava nos finalmente. O coordenador dr. Clodoaldo Beckman ofereceu chance de uma outra turma onde o cara poderia concluir matérias não concluídas na primeira turma. Desta feita, uma consulta informar junto a amigos no Ministério da Saúde dizia-me que o curso não teria grande futuro, visto que contemplava cobrir emergência. Pensei e repensei e fui fazer vestibular para Economia nas Faculdades Colégio Moderno (FICOM, hoje no grupo UNAMA). Foi assim que retornei a Brasília em 1980 fazendo jus à vaga na UnB.

"Demarcar para aproximar" (Cel. Ivonilo Dias Rocha)
 
As mudanças na PCDL aprofundaram-se. E como se não bastasse chegou o Coronel Ivonilo, "cabeça chata" que tanto tinha de cordial como havia de teimoso: escapou ele de ser expulso do Exército durante o golpe de 1964 pelo grande crime de ter sido agrimensor do IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), sucessor do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC) e antecessor do INCRA durante a Presidência de Jango. Ivonilo não foi desligado, mas sim rebaixado de general de brigada para o posto de coronel (sem prejuízo do soldo). 

Para piorar, Ivonilo foi mandado fazer parte da Comissão Militar Brasil-Estado Unidos onde "criou caso" com os gringos, brigando apenas para cumprir com as funções que lhe competiam. Seus superiores mandaram-no ficar quieto... Então, quando ele foi para a reserva e chegou à PCDL queria descontar toda aquela quietude compulsória na modernização técnica do serviço de demarcação de fronteiras. Fez muitas coisas interessantes (inclusive a "operação dentadura da tia", que consistia em desembaraçar a repartição de todo material inservível livrando-a de imitar uma suposta tia que coleciona dentaduras velhas). Teve diversas batalhas perdidas, como ver funcionar no Pará um curso superior de cartografia; pretendeu organizar convênio federal de uso compartilhado de equipamentos... Ivonilo não era ingênuo para não saber da existência de cartéis, mas ele levantava bandeiras impossíveis para mostrar, exatamente, onde está o impedimento. Ele só parou de criar casos quando Collor de Mello sucateou o serviço público e deixou a PCDL a pão e água. 

O Coronel Ivonilo morreu "sem atravancar o trânsito" nem suspender o expediente, num fim de semana, no Hospital Geral do Exército em Belém, onde se internou de urgência e faleceu sem aviso prévio. Deixou como última vontade o desejo de ser enterrado junto a um marco da Fronteira Norte. Como de fato está. É dele a frase "demarcar para aproximar".

O "Astrônomo" Dilermando era capaz de falar por horas e horas de todos lugares e campanhas demarcatórias das quais participou, era ele um especialista. Mas, seus antecessores e superiores pareciam ter dificuldade em aceitar aquele "prático" entre laureada figuras. O que uns e outros não sonhavam àquela altura é que o caboco gozava de má fama, naquele tempo de trevas, de ser "simpatizante" do comunismo. No entanto, o acaso havia colocado o caboco frente à frente com o Govenador Jarbas Passarinho no extremo município de Faro onde no cargo de secretário municipal coube-me saudar o ilustre chefe do governo militar no estado. Passarinho lançou o coronel Alacid Nunes na eleição de 1965 ao cargo de governador e a oposição saiu com o General Alexandre Zacarias de Assumpção... O prefeito da distante Faro recentemente egresso do partido derrubado pelos militares mandou retirar da galeria de ex-governadores que existia no salão da prefeitura o retrato do General Assumpção. Eu pedi para por o retrato do homem no mesmo lugar, dizendo que o discurso que eu preparava na cabeça contemplava uma provocação ao Governador, "olha lá", disse-me o Waldimir da Costa Rossy...

O fato que é que a astúcia do caboco marajoara, de longe elogiada por ninguém menos que Alfred Wallace, o interlocutor de Darwin na elaboração da teoria da evolução das espécies; funcionou. Comecei por dizer tão raro um governante daquele porte chegar aos confins do Nhamundá, na divisa com o estado Amazonas; que seria imperdoável perder ocasião para falar das angústias e esperanças do município e não ficar repetindo a louvação de costume. Enfatizei detalhamente a galeria de governadores, dentre os quais o filho da terra dr. Dionísio Ausier Bentes e o candidato rival, ex-governador Zacarias de Assunpção. 

Encerrei a peroração com a sugestão ao governador para criar grupo de trabalho de estudo para desenvolvimento daquela região extrema do Baixo Amazonas fazendo fronteira com a, até então, Guiana Inglesa. O governador aparentemente surpreso, retrucou dizendo ser "profundamente honesto" citar o nome de seu adversário chamando atenção ao retrato naquela galeria. Bingo!... O prefeito sorriu aliviado. Dono de memória prodigiosa, Passarinho me reconheceria diversas vezes depois dizendo "o homem do discurso". Passada a cerimônia na prefeitura apresentei ao governador Passarinho o senhor Marturana, descendente de italianos e dono de uma propriedade no Igarapé dos Currais chamada "Nova Palestina". 

Eu era fã da reforma agrária - o que me valeu, em Ponta de Pedras, ser tachado de comunista numa campanha para a prefeitura com Wolfango Fontes da Silva, onde meu nome figurava como candidato a vice - e do cooperativismo. Marturano sonhava com uma cooperativa rural em Faro... Da conversa acabou saindo oferta de bolsa de estudo em cooperativismo em Miami tão logo o prefeito pudesse liberar o secretário para o estado. O dito ficou por não dito, devido a diversas circunstâncias inclusive a displicência própria do caboco e ao fato do Coronel Passarinho ter saído com urgência do governo do Pará para assumir o Ministério do Trabalho, enquanto eu voltava a Ponta de Pedras para ser secretário do prefeito Antonico Malato (Antônio Ribeiro Malato), uma experiência inesquecível. Compadre de meu pai, Antonico foi lançado como candidato a prefeito pelo velho PSD que governava o município "há séculos". Fiz minha estreia política contra esta candidatura. 

Eleita a oposição em Ponta de Pedras (1961) liderada por Romeu Santos, depois de décadas, com Nhorito (Francisco Tavares Noronha) pelo PTB, este quis nomear-me secretário municipal. Mas importantes figuras do partido vencedor opuseram-se à nomeação, supostamente o próprio deputado Romeu Santos e seu principal aliado, na época, Roxinho (Albertino Ferreira Júnior). Eu estava com 24 anos de idade. Antonico veio falar comigo dizendo ele que nas próximas eleições (1965) sairia novamente candidato e que caso eleito fosse gostaria que eu trabalhasse com ele na prefeitura. 

Na verdade, tal fora a paixão daquela minha juvenil campanha que perdi o emprego de repórter no Jornal do Dia e de repente estava, como diz o caboco, "matando cachorro a grito"... Assim, por acaso, através do conterrâneo Antonio Ramos que era coletor estadual de rendas, fui me entrevistar com o prefeito de Faro e acabei por lá uma boa temporada. Antes de morar em Faro eu duvidava da lenda das amazonas, depois de pouco tem eu não apenas tinha visitado o Lago Espelho da Lua como tive certeza até hoje de que as tais amazonas moram ainda em Faro... 

Com uma breve interrupção quando do racha político de Ponta de Pedras entre o prefeito Nhorito e o deputado Romeu Santos ao lado do vice-Prefeito Alirio Carneiro Ramos, Nhorito acabou por me nomear secretário conforme manifestou desde o começo de seu mandato. Foi um tempo político tumultuado no município e o governador Jarbas Passarinho decretou intervenção estadual. Retornei a Faro até final de 1965 com o final do mandato de Wladimir Rossy para iniciar a gestão de Antonico Malato, em Ponta de Pedras. Combinamos logo de início que eu deveria permanecer cerca de dois anos, pois já estava decidido ir tentar a sorte em Brasília. E assim foi,  de 1966 a 1967 não sem dificuldades conseguimos realizar uma reforma administrativa na prefeitura. A cabo do tempo combinado Ponta de Pedras apresentou ao governador Alacid Nunes o primeiro Plano Plurianual de investimentos (1966-1969), para o mandato completo do prefeito. Houve orçamento participativo na sede do Circulo Operário aberto a toda população, aprovado por unanimidade numa situação sui generis na qual a oposição tinha maioria absoluta da Câmara... E eu ainda arranjei tempo para dar aulas de alfabetização de adultos seguindo método de Paulo Freire.

Só que eu não contava com a estafa que vinha a cavalo. Despedi-me de Antonico dizendo-lhe que ia me preparar para mudança a Brasília, entretanto pensava ir discretamente ao Araguaia me engajar na educação de base dos camponeses. Não deu. No dia que completei 30 anos de idade chorei toda impotência do mundo, estava esgotado e em pânico; queria ir à luta mas eu estava precisando de socorro. Descrente de tudo, me diziam para ir ao terreiro de umbanda. Em 1968 foi pior e 1969 não existiu para mim, com mais de 1,70 metro de altura cheguei a pesar menos de 50 kg.  Meu tio dr. Ritacinio Pereira veio do Rio a Belém e passou um dia inteiro conversando comigo, aquilo foi um tremendo apoio para eu me reerguer e lutar.

Depois da virada de minha vida em Brasília aonde minha irmã Socorro me arrastou com ralhos de mãe, entre 1970 e 1974, estava na PCDL e fiz com apoio de Ivonilo a melhor coisa que podia que foi participar de cinco meses de campanha, em 1977, na fronteira com a Venezuela. Inesquecível. O muito que meus amigos índios me ensinaram para sempre. Voltei cheio de vida e confiança. Em 1979 fui a Caracas como membro brasileiro da conferência mista brasileiro-venezuelana demarcadora de limites. 

Na escala no Rio de Janeiro a Caracas falei por telefone com Dalcídio pela última vez, derrotado pelo mal de Parkinson se calaria para sempre aquela voz e aquela escrita em favor da Criaturada grande... Numa vinda a serviço em Belém, em 1980, o Secretário Palm convidou-me a voltar a Brasília a fim de cuidar da secretaria administrativa da Divisão de Fronteiras (DF). A DF era famosa dentre outras coisas por algum dia no passado ter sido dirigida pelo embaixador João Guimarães Rosa, quando o Itamaraty ainda estava no Rio de Janeiro. 

O Coronel Ivonilo, chefe da PCDL, liberou meu “passe”, ano de 1980, e aproveitei o fim de semana para mostrar a pacata cidade de Ponta de Pedras terra natal de Dalcídio Jurandir ao Secretário Palm, hoje Ministro e Cônsul-Geral em Roma. Pra quem não sabe, Dalcídio Jurandir no Marajó e Guiamarães Rosa nos sertões de Minas Gerais são dois romancistas brasileiros que tem, segundo pesquisadores, bastante coisas em comum. Sobre Euclides da Cunha, direi agora que, depois de Dalcídio no romance “Marajó”, foi ele com “Os Sertões” quem me mostrou o Brasil profundo, no caso o Nordeste durante a Guerra de Canudos. Dalcídio e Euclides ademais me mostraram o homem amazônico à margem da História... Acha que o caboco que vos fala não tem por que se entusiasmar com a perspectiva da solenidade na sede das demarcações de limite da Fronteira Norte?

Um leitor de Guimarães Rosa nos confins de Macunaíma

Por acaso eu estou entre a brava gente demarcadora da Fronteira Norte: não por merecendência, é claro; mas por bondade da sorte. O maior demarcador marajoara da Fronteira Norte é filho de Soure, chama-se Dilermando de Moraes Mendes, e deu os primeiros passos pelas margens do rio Paracauari ou Igarapé Grande, como ele nos ensinou. Condecorado pelos governos do Brasil e da Venezuela ainda durante o serviço ativo, o veterano demarcador agora aposentado é merecedor da medalha Euclides da Cunha. Já o caboco que vos fala deu os primeiros passos no bairrozinho da vila de Itaguari (Ponta de Pedras) chamado o Fim do Mundo, às ilhargas do Curro Municipal, na beira do Marajo-Açu.

Por que Euclides da Cunha é importante para a demarcação de limites da Fronteira Norte? A assinatura do Tratado de Petrópolis entre o Brasil e a Bolívia, em 1903, possibilitou a anexação do Acre Meridional ao Brasil, uma faixa de terra de 191 mil quilômetros quadrados. O Tratado de Limites entre o Brasil e o Peru (1909) regularizou e anexou outros 152 mil quilômetros quadrados. Relatórios escritos por Euclides da Cunha foram fundamentais para que os dois países fechassem o acordo.

Em 1905, três anos após publicar Os Sertões, Euclides da Cunha foi ao Acre para desvendar para o Brasil a realidade amazônica, da mesma maneira como havia feito com Canudos, no sertão da Bahia. Partiu do Rio de Janeiro como chefe da delegação brasileira na Comissão Mista Brasileira-Peruana de Reconhecimento dos Rios Juruá e Purus. Esta comissão de inspeção de fronteira tinha como objetivo estudar “in loco” o conflito deflagrado na fronteira entre os dois países pela disputa de seringais nativos que possuíam relevante valor econômico. Anotações e relatórios elaborados a partir desta viagem de estudo serviram de base para o tratado de limites entre o Brasil e o Peru. Euclides da Cunha escreveu relatos, e cartas a amigos publicados em artigos no jornal O Estado de S. Paulo. Esta e outras comissões tiveram caráter específico. Somente em 1928 foi organizada a primeira comissão demarcadora de limites em caráter permanente. 


A PCDL é uma escola de brasilidade na Amazônia. Infelizmente, poucos brasileiros a conhecem. Aos 80 anos de idade da Primeira Comissão Demarcadora, o Itamaraty vem de promover ampla divulgação deste importante serviço auxiliar da diplomacia brasileira. Notável pela solução pacífica de conflitos e pela extensão territorial de nossas fronteiras com todos países da América do Sul, exceto Chile e Equador. A PCDL é responsável pela linha de limites com o Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana francesa. A SCDL, com sede na cidade do Rio de Janeiro, por sua vez fica responsável pelos limites com o Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. O Brasil possui 23.102 km de fronteiras, sendo 15.735 km terrestres e 7.367 km marítimos.


 sede da PCDL/MRE em Belém-PA
 
(a seguir 2ª parte)

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CENTRO EIDORFE MOREIRA DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA MARAJOARA




Fiel ao meu papel de agitador de ideias, devo confessar mais uma vez que nada tenho de meu neste nem em outro qualquer campo. Tudo que sei vem de muitos mestres e mestras, malgrado a rudeza e inconstância do aprendiz. Eidorfe Moreira é um de meus ídolos da amazonidade e sua obra está entre meus livros de cabeceira. 

Por bondade do amigo e mestre, o saudoso jornalista Claudio de Sá Leal; publiquei em fins da década de 1970, "entrevista" póstuma com Eidorfe Moreira sobre o aproveitamento do igapó na paisagem cultural de Belém. A partir da célebre análise de Henri Coudreau em "L'Avenir de la capitale du Para", o geógrafo paraense elaborou seu magistral "Belém e sua expressão geográfica", obra magna que deveria ser guia político de gestores e vereadores de nossa estratégica metrópole regional. No autor também se acham importantes apontamentos sobre a formação da sociedade paraense em seus diversos elementos nativos e adventícios.

 Foi Eidorfe quem ensinou a mim e a muitos que o leram que a microrregião de Breves é o "apogeu igapóreo" do planeta. Ele redime esta formação palustre típica de trópico úmido do horror hidrofóbico com que a ignorância ecológica havia pintado o pântano com as piores visões do inferno verde.  Podemos ler na crônica colonial como o colonizador se lança contra a natureza selvagem para a desbravar e civilizar. Esta compulsão alienígena está no cerne das grandes devastações pela fobia do homem urbano em relação à floresta. No trópico úmido, governar é desmatar e aterrar. Modernamente, o triunfo supremo é o asfalto e o cimento. Mas, Eidorfe demonstrou que o igapó desmatado deixa de ser igapó e passa a ser a baixada na geografia urbana amazônica com todos os problemas sociais e sanitários que conhecemos.

De maneira que, no momento que a gente, pouco a pouco; vai despertando para a necessidade de preservação ecológica da Amazônica e descobre o tesouro socioambiental que o arquipélago do Marajó representa nesta região; entra-se em desespero com o tipo de "civilização" que os Homens Bons do Pará decretaram para "desenvolvimento" do "maior arquipelago fluviomarinho do mundo" sito no complexo delta-estuário da maior bacia fluvial da Terra. 

Como se recorda, "Homem Bom" é uma expressão da Idade Média em Portugal que passou ao Brasil colônia. São homens de lugares e vilas que tinham relevância social perante o reino por possuírem propriedades rurais ou outros bens de exercício de ofícios não manuais. Um Homem bom participava das listas de eleitores que escolhiam membros das câmaras municipais e das freguesias, podiam votar e ser votados. No Brasil um "homem bom" era comumente o proprietário de terra cristão-velho. Desta categoria se excluíam escravos, trabalhadores manuais e cristãos-novos entre outros. 

Para se ter uma ideia como eram minoritários na sociedade colonial amazônica os homens bons, lembramos que cerca de 1653 quando chegou ao Pará, o padre Antonio Vieira não encontrou mais que uma centena de "moradores", fora os padres e os escravos. É desta velha cepa portuguesa que proveio, ao longo de quase quatro séculos, o tronco oligárquico pouco acrescido por casamentos com famílias de posse ou cabedal intelectual que se acha a classe dirigente, em diferentes papeis de mando na vida social da região. A mobilidade social acontece, excepcionalmente, com a peculiariedade referida por Henri Bates, no século XIX, quando ele vindo ao Pará pela segunda vez procurou por uma pessoa de cor negra de que havia conhecido em sua primeira viagem. Para espanto do naturalista ficou sabendo que a pessoa havia se tornado um "branco". Ou seja, um "homem bom": pelo fato de ter conseguido ficar rico...


Nas condições de isolamento da ilha do Marajó o feudalismo ilhéu transplantado pelo colonialismo português à ilha da Madeira, Cabo Verde e Açores iria se apurar em contraste com o golfão marajoara. Onde tudo é grande, principalmente as dificuldades de sobrevivência da população tradicional - "Criaturada grande de Dalcídio" - , só o homem marajoara, ao longo de séculos de injustiça e opressão, resta pequeno no isolamento dos sítios entregues à servidão da gleba ao deus dará dos caprichos insensatos de seus mesquinhos senhores. Aí os Homens Bons foram donos de fazenda e engenho e seus herdeiros formam a atual classe dirigente a qual se agregam pequenas burguesias das sedes municipais.

Claro, ultimamente as coisas começaram a mudar com mais rapidez. Mas é tão pouco e incerto que a gente ainda desconfia da possibilidade de uma verdadeira mudança. O drama ribeirinho consiste na ditadura imposta pelo regime de sesmarias após a falsa pacificação de Mapuá, por exemplo, que descendentes de índios nunca ouviram falar. Como de fato nem desconfiam que são filhos e netos de índios desmemoriados... Os acontecimentos históricos passam de bubuia no rio de Heráclito, como dias e noites se sucedem sob os olhos opacos dos rebanhos... Fatos que seriam de suma importância para os direitos humanos desta gente, marginalizada pela História, não têm nenhum interesse acadêmico para a elite Paris n'América papa chibé, que reina absolutamente no conforto hereditário da oligarquia paraense. 

As diversas oligarquias das regiões amazônicas, como se deve saber, têm por patrono um certo armador de navios e aliciador de imigrantes chamado Simão Estácio da Silveira, autor de uma panfleto prometendo aos pobres de Portugal o paraíso no Maranhão. Na verdade, o que ele desejava com o subterfúgio do povoamento português era ultrapassar a famosa "linha" de limites entre Portugal e Espanha, entrando rio acima em busca de imaginários tesouros das Amazonas... Claro que estes pobres imigrantes lançados "às feras" eram casais açorianos desde priscas eras enganados pelas promessas da corte. Esquecidos do fado da pesca e da lavoura, no Maranhão e Grão-Pará foram preadores de índios e muitos morreram massacrados pelos bravos dando ensejo ao grande massacre de represália, em 1619, por tropas comandadas por Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira. Os sobreviventes destes primeiros colonos promovidos a Homens Bons, donos de terra, escravaria, gados e fama patriarcas de famílias brancaranas (pra não dizer mamelucas ou mestiças).

Quanto a gente fala em "Maranhão", no século XVII, quer dizer Amazônia lusitana e, por conseguinte, brasileira na primeira metade do século XIX. Há 400 anos, a invenção da Amazônia pela Europa, é a história da corrida colonial entre monarcas ambiciosos respaldados por mercadores concorrentes judeus e germânicos cristianizados em torno do "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas, 1492-1750), que dividiu o mundo "achado e por achar" entre os Reis Católicos e Sua Majestade Fidelíssima, homologado pela papa Alexandre VI (o aragonês Rodrigo Bórgia).

Ora, tão logo Colombo anunciou o descobrimento do caminho ocidental paras as "Índias" (1492), a Europa de ponta a ponta entrou em transe. Nesta margem do Atlântico soou a trombeta do fim do mundo para antigas civilizações ameríndias. A "linha" de Tordesilhas veio repousar, por acaso, sobre a baía do Marajó: para a margem direita do Pará tudo cabia ao reino de Portugal e na margem esquerda até o Pacífico tudo ficaria então com a Espanha. Mas, não combinaram com os índios... Como, no caso do Acre, não haviam combinado com os seringueiros do gaúcho Plácido de Castro: todavia, Raul Bopp sentenciou "o Amazonas tanto embarrigou que pariu o Acre"...

Logo, a ilha do Marajó, Amapá e o restante da Amazônia nos termos de Tordesilhas pertenceria a Espanha. Embora, a viagem de Pinzón (1500) e o descobrimento do "rio grande de Orellana" (1542), depois chamado "rio das Amazonas", e a tentativa de ocupação com o Adelantado de Nova Andaluzia (1544) terminada com o desaparecimento e morte de Orellana. Somente com a França Equinocial (1613) e sua posterior tomada pelos portugueses em 1615, dentro da União Ibérica (1580-1640), começou de fato a formação territorial do estado do Maranhão e Grão-Pará (1621-1751), sucedido pelo estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1772). Assim chegamos hoje à região norte do Brasil chamada Amazônia, prestes a completar 400 anos.

Pelos fins do século XVII, companhias gerais de comércio holandesas e inglesas, começaram a fundar feitorias fortificadas na região com famílias de colonos protestantes e escravos africanos no Amapá, Marajó, Xingu e Baixo-Amazonas. Esta tática de ocupação contemplava o estado de guerra com o império espanhol em consequência da morte do rei de Portugal D. Sebastião e sua sucessão no trono luso por Felipe II de Espanha (1580). 

Ingleses e holandeses sabendo da truculência da conquista hispânica usaram amplamente o comércio de escambo com os indígenas, procurando conquistar-lhes a amizade e forjar dependência de produtos manufaturados, explorando rivalidades entre nações indígenas e seus concorrentes católicos. Evidentemente, foram ingleses e holandeses os primeiros colonizadores a empregar a escravidão africana na Amazônia, enquanto protestantes franceses basearam sua ocupação na região pela introdução de colonos europeus e união de armas com os guerreiros Tupinambás, também estes recentes conquistadores da região contra povos mais antigos chamados genericamente Tapuias.

É neste quadro que o nosso velho Marajó de guerra - herdeiro de uma cultura pré-colombiana milenar -, iria comparecer à história colonial da Amazônia em seu primeiro século de vida: eram os marajoaras chamados, pejorativamente, de Nheengaíba, uma federação de povos aruaques em guerra defensiva contra a invasão de suas terras frente aos antropófagos Tupinambás (pelo menos um documento de fonte portuguesa, atribuído ao mameluco Diogo Nunes, relata uma importe migração saída de Pernambuco pelos sertões chegando na Amazônia peruana em 1538; demonstra conflito inter-indígena na Amazônia antes dos europeus). Com exceção do historiador Ubiratan do Rosário, historiadores do Pará ainda não fazem conexão com o mito da Terra sem males para explicar a presença tupinambá na história da Amazônia. Segundo a historiografia brasileira plasmada no molde imperial do IHGB e afiliados, o "bom selvagem" na Amazônia não passa de um bando de comedores de carne humana e depois de batizados apenas burro de carga até a exaustão.

Marajó não é exatamente uma "barreira do mar", porém foi sim uma fronteira viva e sangrenta entre as duas margens do Pará: por acaso, sobre a "linha" de Tordesilhas... Foram 44 anos de guerra para expulsar os concorrentes de Portugal e romper a tal linha de limites jamais demarcada, se não com a zarabatana mortal e dardos envenenados dos belicosos guerrilheiros Nheengaíbas. O primeiro marco da ruptura da linha de Tordesilhas é o forte de Gurupá (1623). Mas, a consolidação da conquista e afastamento final do concorrente colonial somente poderia acontecer pelo fim daquela guerra. Acontecimento de Mapuá (27 de agosto de 1659) e fundação, no mesmo ano, das aldeias nheengaíbas de Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel).

O triângulo do delta-estuário amazônico com vértices no Presépio (1616), Gurupá (1623) e Macapá (1782) deixa ao centro o enorme arquipélago marítimo e fluvial acrescido da microrregião continental de Portel perfazendo 104 mil km² de superfície com 503 mil habitantes. Neste espaço a Universidade Federal do Pará quase 30 anos após implantar o campus de Soure, em1986, entra em expectativa de criar a nova Universidade Federal do Marajó.

É consensual que esta universidade autônoma que vai suceder a UFPA na região marajaora deva ser uma estrutura multicampi a fim de atuar em dezesseis municípios. E, portanto, por uma predisposição geográfica e maior concentração demográfica a cidade de Breves deverá ser a sede administrativa desta nova universidade. Então, como está claro que a UFPA é desde 1986 a instituição tronco da nova universidade do Marajó, tudo que a UFPA fizer na região doravante deve convergir com o projeto da nova universidade.

Por isto gostaria de lembrar a obra de Eidorfe Moreira sobre Marajó, notadamente o Roteiro Bibliográfico de Marajó. Poderia a Prefeitura Municipal de Breves com a reitoria da UFPA projetar um CENTRO EIDORFE MOREIRA DE ESTUDOS destinado a vir a ser integrado provisoriamente no campus da UFPA em Breves e depois à nova universidade. Aí o Roteiro Bibliográfico seria continuado como centro de documentação aberto à comunidade acadêmica nacional e internacional.


Eidorfe Moreira nasceu a 30 de julho de 1912 na Paraíba. Com menos de dois anos de idade veio para Belém, para onde sua família se transferiu. Como estudante, participou da vida cultural acadêmica e das atividades políticas do Pará. Na revolta estudantil de apoio à Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932), foi ferido e teve um braço amputado. Em 1935, começou a publicar na imprensa diária.Formou-se em direito em 1938 e no ano seguinte iniciou carreira no magistério. Foi professor de Economia Política, contribuiu nas áreas de ciências e geografia. Ingressou no serviço público em 1945, onde permaneceu até se aposentar. Foi também professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará onde exerceu várias funções, afastando-se em 1982. Eidorfe Moreira é considerado um dos intelectuais mais importantes de sua geração e um dos vultos mais notáveis do Pará. Faleceu aos 77 anos de idade, em Belém, no dia 02 de janeiro de 1989.

domingo, 20 de outubro de 2013

ENTRE CHUVAS E ESQUECIMENTO






uma re-visão antropoética sobre a marginalização histórica do povo marajoara.



Em meio às águas barrentas do golfão amazônico, empurrando o azul do mar profundo para longe da costa, a Amazônia Marajoara manda notícias históricas ao vasto mundo numa garrafa de náufrago através da corrente das Guianas além do Cabo do Norte e da fronteira do Oiapoque. No extremo-norte brasileiro a grande ilha dos Marajós parece porta-aviões ancorado no delta-estuário Pará -Amazonas. Ou seria o navio encantado no reino das Amazonas? A bordo o fantástico carregamento de lendas e mitos numa história incrível remontando a mais de mil anos... Balsa de carga de contos dos antigos caciques e matriarcas do tempo da vela de jupati ou arca de Noé tapuia encalhada na boca do maior rio do mundo.



A ilha grande conta por alto o drama de seus tesos pisoteados por búfalos animais ou humanos ruminantes, debaixo da chuva da ignorância, como foi que a população de 503 mil almas ribeirinhas em rico território de 104 mil km² nascida, cometeu a incrível façanha de chegar aos piores níveis de pobreza da América latina. Pobre gente ribeirinha. Ou seria a criaturada sem eira nem beira rica herdeira de um paraíso perdido? Se os últimos serão os primeiros, como outrora diziam os padres dos primeiros dias do catecismo de Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Babel: quem sabe o futuro há de vir, neste ilhado fim de mundo, pelas beiras da história ou pelas margens da civilização em decadência. Começo de outro mundo menos infeliz para o povo do país, é esta mesma gente quem diz.



Esta brava gente – “Criaturada grande de Dalcídio” no dizer de Eneida de Moraes – há muitos séculos habita o tempo de 500 e tantas aldeias sobre antigas palafitas e tesos proto-históricos. Hoje ela faz contraponto à aldeia global, tal qual a estúrdia academia do peixefrito no Ver-O-Peso foi o grito de independência ou morte das letras amazônidas face ao augusto cenário literário nacional. Isto é, na verdade, a terceirização luso-brasileira da cultura universal assim chamada. Já que a diversidade é a fada madrinha destas ilhas filhas da pororoca. Lugares ancestrais que se perdem na memória e se desdobram em milhares de sítios panemas por varjas, campos e matas virgens diversas, dispartidos em mais de duas mil ilhas pelas regiões isoladas do Arari e Furos de Breves. Assim também na terra firme, mato adentro, na região de Portel chamada rumo aos confins do Tocantins e do Xingu.



Quem diria? A desconhecida “Ilha dos Nheengaíbas”, com a barbaridade de seus antigos costumes pagãos na invencível guerrilha a peso de zarabatana de paxiúba e dardos de talo de patauá envenenados, mais a ruindade da sua língua incompreensível; enganados na falsa pax de Mapuá, se tornaria este vasto latifúndio na dimensão de um país atravessado na boca do maior rio do mundo!... Onde os donos das antigas sesmarias meteram os pés pelas mãos e encheram a terra dos índios de currais, engenhos de cachaça, olarias, casas de comércio, serrarias e igrejas. Masporém, Deus paresque se esqueceu de botar a mão em riba desta gente; zangado que nem Tupã antigamente, com sua voz de trovão, ralhando pajé que mijava fora do caco. Segundo contam alguns velhos a lenda explicativa da panemice geral destas ilhas, devido a praga lançada como castigo pela expulsão dos padres e frades a rogo de escravagistas coloniais.



Quanto Marajó desencanta de seus antigos males? Talvez – pensando eu, aprendiz de pajé reprovado por falta de fé – , quando a gente resgatar com brilho a utopia evangelizadora do reino de Jesus Cristo consumado na terra, em fraternidade com o mito fecundador de Terra sem males: paraíso selvagem onde não existe Fome, Trabalho escravo, Doença, Velhice e Morte... Haverá algo mais ecumênico e planetário do que isto? Entretanto, tudo se passava debaixo do nariz do “payaçu dos índios” e ele não viu aonde queriam chegar os Tupinambás, nem entendeu o que os Nheengaíbas poderiam dizer se lhes não tivessem tapado a voz na garganta com a corda e o baraço. Os obrigando a falar a língua-geral para, enfim, aprender português sob peso de palmatória.



Ao todo, as velhas aldeias do passado distante se transformaram em dezesseis municípios do Marajó velho de guerra, resultado da repartição de terra dos extintos confederados Nheengaíbas pelo famigerado Diretório dos Índios. Eis a lista alfabética das municipalidades marajoaras, desde 1757 (ano do édito pombalino) até 1961 (dos mais recentes desmembramentos de municípios): 

Afuá (o mistério africano de um nome de mulher), Anajás (segredo da brava nação indígena invencível), Bagre (como um peixe vivo no rio Panaúba), Breves (a terra do cacique Piié Mapuá), Cachoeira do Arari (memória viva de Ananatuba), Chaves (a morada eterna dos Aruãs), Curralinho (aldeia de Maruaru), Gurupá (lugar de memória de Mariocai), Melgaço (aldeia de Aricará), Muaná (cidade histórica da brasilidade parauara), Ponta de Pedras (aldeia dos Guaianás), Portel (aldeia de Aracaru), Salvaterra (pátria amada dos Sacacas), Santa Cruz do Arari (o lago ancestral dos marajoaras), São Sebastião da Boa Vista (a bela das ilhas) e Soure (aldeia dos Maruanás).



Cada um deles um Marajó à parte. Ilhas dentro de ilhas repartidas por furos e igarapés. Onde esta boa gente se acha dividida deste muitas antigas rivalidades, herdadas de velhas guerrilhas locais e pobrezas importadas de além mar. Sem exagero, o primitivo Marajó foi mata fome de todo mundo e já deu de comer a muita gente... 

O peixe nosso de cada dia, camarão de matapi mais o pirão de açaí, roças de mandioca em quantidade e os gados do rio (peixe-boi, tartaruga e pirarucu). A piracema de peixe do mato foi chamariz e comedia de bandos de aves aquáticas e vários outros predadores: fossem eles rastejantes como a cobra grande sucuriju, andassem sobre quatro ou duas patas... Tal qual o paleo-índio mariscador que aprendeu, por necessidade e acaso, a pescar de gapuia de tanto ver lambança de guaxinim pegando peixe na maré seca no leito de igarapé.



A gapuia será talvez a grande mestra de ofício inventora da Cultura Marajoara cantada em prosa e verso, neste mundo anfíbio onde as águas e o tijuco são inseparáveis. A educação pelo barro dos começos do mundo. Infinita reivenção de ilhas-arcas de Noé ao longo da costa, que seguem a correnteza ao sabor da maré: divisa entre animalidade e humanidade. Pra não dizer, Natureza e Cultura (pela fé da mucura, cá entre nós, que é nome de bicho e de festa improvisada a cabo da faina do dia).






E quando, apesar de tudo, as aldeias da Missão sossegavam dos tormentos iniciais da invenção da Amazônia, lá vem o tal Diretório dos Índios! Dizendo o senhor capitão-general e governador do estado do Grão-Pará e Maranhão que, diz-que, era para liberdade dos índios... escravos dos jesuítas. Todavia as mesmas promessas de liberdade dos índios e o papel histórico da Companhia de Jesus como protetora dos índios fora invocada cem anos antes: aqui a promessa foi quebrada mediante a primeira expulsão dos padres e depois, para retorno ao Pará, conciliação destes últimos com o regime das tropas de resgate (o “descimento” e “redução” dos gentios).



Como diria Voltaire, “o mundo só terá paz quando se enforcar o último rei com a tripas do último padre”... Porém, no caso do Marajó, se não existisse el-rei Dom João IV e padres na capitania-geral do Pará o genocídio teria sido total, atendendo o pedido da Câmara de Belém ao governador do Maranhão e Grão-Pará, mameluco André Vidal de Negreiros, a fim de levar a “guerra justa” (cativeiro e extermínio) à Ilha dos Nheengaíbas. 

Já na segunda expulsão dos jesuítas – não tão inocentes das acusações, segundo historiadores tais como o ponderado João Lúcio de Azevedo –, a declarada liberdade dos índios logo se tornaria descarada servidão em mãos de diretores de aldeias e até mesmo de vigários das freguesias; recrutados apressadamente para substituir os missionários expulsos e recolhidos à prisão em Portugal.



Claro que os cabocos (índios recentemente "extintos" por decreto) já declarados novos súditos portugueses, iguais perante às leis do reino a todos mais súditos da coroa; com a estúpida notícia cairam no mato sem cachorro: caminho do feio é por onde veio... 

E, por isto, a imigração clandestina e o contrabando na rota do Oiapoque também teve forte incremento com o Diretório dos Índios dentre a longa série de acontecimentos históricos, escritos e não-escritos, que costuram as regiões amazônicas às ilhas do Caribe desde tempos imemoriais.



Na luta entre o iluminismo e a escolástica índios, negros e mestiços pagaram o pato, conforme conta Alejo Carpentier, no romance “O Século das Luzes”. Eu acho, ademais, que por conta da 'obra' (sic) do Diretório dos Índios, se acaso existisse vida além túmulo, o primeiro ministro de Dom José I estaria a pé queimando no quinto dos infernos... 

Ou não. Pois, segundo uma santa senhora curandeira em Icoaraci, o Marquês converteu-se no Purgatório das capitanias hereditárias do outro mundo. Agora ele é um espírito de luz montado no "cavalo" mediúnico e trabalha, que nem carola de igreja, numa seara de umbanda lado a lado com caruanas, cabocos de arco e flecha e pretos velhos. Para resgate de sua dívida histórica, cuida ele zelosamente dos destinos da antiga terra Tapuia. Aonde, paresque, queria transferir a Família Real para fundar no Pará o Quinto Império do Mundo, conforme profecias sebastianistas do Padre Antonio Vieira.

Se não é vero, espero que por artes políticas deste e outros mundos ainda seja possível fazer alguma coisa neste sentido, embora a irremediável contradição entre pajelança, jesuitismo e iluminismo não deixe margem à concretude das utopias. Quem quer saber de coerência numa terra onde gente vira bicho e bicho vira gente, plantas mágicas se transformam em guardiões de caminhos e guardadores de casa? Aqui o realismo mágico fez capital.



No mundo pós-moderno já se fala em inventar, na Amazônia "celeiro do mundo" pra variar; uma tal ecocivilização. Mas a gente sabe que ecocivilização existia aqui antes dos civilizados chegar e estragar a ecologia humana com as suas inglezias, matanças e viagens philosophicas, que estão na origem da biopirataria.



Não ria, mano velho, o caso é serio... As esperanças dos Marajós são agora que a gente mesma possa converter, na terra, os malfeitos do diretório pombalino e seus seguidores no “desenvolvimento” insustentável da Amazônia. Como no céu dos terreiros e casas de Mina das populações tradicionais o avatar do Marquês está a dar serviço a fim de curar a estória, sem pé nem cabeça, da “elevação” de antigas aldeias indígenas em vilas e lugares com nomes tirados por acaso de Portugal, tais quais: Aricará (Melgaço), Aracaru (Portel), Maruaru (Curralinho), Aruans (Chaves), Guaianazes (Vilar), Joanes (Monforte), Maruanazes (Soure), Cayá (Monsarás), Jaburuacá (Condeixa) e outros que já não me lembro.



Deste modo, o Homem marajoara por ele mesmo libertado de tantas libertações estranhas, achará caminho para o futuro de seu próprio desenvolvimento humano. Por exemplo, 500 aldeias marajoaras autossustentáveis – como, no passado, aldeias suspensas em tesos sobre campos alagados –, na prancheta dos sonhos, configuram o amanhã da Ciência & Teconologia que precisamos. Por que não?