domingo, 20 de outubro de 2013

ENTRE CHUVAS E ESQUECIMENTO






uma re-visão antropoética sobre a marginalização histórica do povo marajoara.



Em meio às águas barrentas do golfão amazônico, empurrando o azul do mar profundo para longe da costa, a Amazônia Marajoara manda notícias históricas ao vasto mundo numa garrafa de náufrago através da corrente das Guianas além do Cabo do Norte e da fronteira do Oiapoque. No extremo-norte brasileiro a grande ilha dos Marajós parece porta-aviões ancorado no delta-estuário Pará -Amazonas. Ou seria o navio encantado no reino das Amazonas? A bordo o fantástico carregamento de lendas e mitos numa história incrível remontando a mais de mil anos... Balsa de carga de contos dos antigos caciques e matriarcas do tempo da vela de jupati ou arca de Noé tapuia encalhada na boca do maior rio do mundo.



A ilha grande conta por alto o drama de seus tesos pisoteados por búfalos animais ou humanos ruminantes, debaixo da chuva da ignorância, como foi que a população de 503 mil almas ribeirinhas em rico território de 104 mil km² nascida, cometeu a incrível façanha de chegar aos piores níveis de pobreza da América latina. Pobre gente ribeirinha. Ou seria a criaturada sem eira nem beira rica herdeira de um paraíso perdido? Se os últimos serão os primeiros, como outrora diziam os padres dos primeiros dias do catecismo de Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Babel: quem sabe o futuro há de vir, neste ilhado fim de mundo, pelas beiras da história ou pelas margens da civilização em decadência. Começo de outro mundo menos infeliz para o povo do país, é esta mesma gente quem diz.



Esta brava gente – “Criaturada grande de Dalcídio” no dizer de Eneida de Moraes – há muitos séculos habita o tempo de 500 e tantas aldeias sobre antigas palafitas e tesos proto-históricos. Hoje ela faz contraponto à aldeia global, tal qual a estúrdia academia do peixefrito no Ver-O-Peso foi o grito de independência ou morte das letras amazônidas face ao augusto cenário literário nacional. Isto é, na verdade, a terceirização luso-brasileira da cultura universal assim chamada. Já que a diversidade é a fada madrinha destas ilhas filhas da pororoca. Lugares ancestrais que se perdem na memória e se desdobram em milhares de sítios panemas por varjas, campos e matas virgens diversas, dispartidos em mais de duas mil ilhas pelas regiões isoladas do Arari e Furos de Breves. Assim também na terra firme, mato adentro, na região de Portel chamada rumo aos confins do Tocantins e do Xingu.



Quem diria? A desconhecida “Ilha dos Nheengaíbas”, com a barbaridade de seus antigos costumes pagãos na invencível guerrilha a peso de zarabatana de paxiúba e dardos de talo de patauá envenenados, mais a ruindade da sua língua incompreensível; enganados na falsa pax de Mapuá, se tornaria este vasto latifúndio na dimensão de um país atravessado na boca do maior rio do mundo!... Onde os donos das antigas sesmarias meteram os pés pelas mãos e encheram a terra dos índios de currais, engenhos de cachaça, olarias, casas de comércio, serrarias e igrejas. Masporém, Deus paresque se esqueceu de botar a mão em riba desta gente; zangado que nem Tupã antigamente, com sua voz de trovão, ralhando pajé que mijava fora do caco. Segundo contam alguns velhos a lenda explicativa da panemice geral destas ilhas, devido a praga lançada como castigo pela expulsão dos padres e frades a rogo de escravagistas coloniais.



Quanto Marajó desencanta de seus antigos males? Talvez – pensando eu, aprendiz de pajé reprovado por falta de fé – , quando a gente resgatar com brilho a utopia evangelizadora do reino de Jesus Cristo consumado na terra, em fraternidade com o mito fecundador de Terra sem males: paraíso selvagem onde não existe Fome, Trabalho escravo, Doença, Velhice e Morte... Haverá algo mais ecumênico e planetário do que isto? Entretanto, tudo se passava debaixo do nariz do “payaçu dos índios” e ele não viu aonde queriam chegar os Tupinambás, nem entendeu o que os Nheengaíbas poderiam dizer se lhes não tivessem tapado a voz na garganta com a corda e o baraço. Os obrigando a falar a língua-geral para, enfim, aprender português sob peso de palmatória.



Ao todo, as velhas aldeias do passado distante se transformaram em dezesseis municípios do Marajó velho de guerra, resultado da repartição de terra dos extintos confederados Nheengaíbas pelo famigerado Diretório dos Índios. Eis a lista alfabética das municipalidades marajoaras, desde 1757 (ano do édito pombalino) até 1961 (dos mais recentes desmembramentos de municípios): 

Afuá (o mistério africano de um nome de mulher), Anajás (segredo da brava nação indígena invencível), Bagre (como um peixe vivo no rio Panaúba), Breves (a terra do cacique Piié Mapuá), Cachoeira do Arari (memória viva de Ananatuba), Chaves (a morada eterna dos Aruãs), Curralinho (aldeia de Maruaru), Gurupá (lugar de memória de Mariocai), Melgaço (aldeia de Aricará), Muaná (cidade histórica da brasilidade parauara), Ponta de Pedras (aldeia dos Guaianás), Portel (aldeia de Aracaru), Salvaterra (pátria amada dos Sacacas), Santa Cruz do Arari (o lago ancestral dos marajoaras), São Sebastião da Boa Vista (a bela das ilhas) e Soure (aldeia dos Maruanás).



Cada um deles um Marajó à parte. Ilhas dentro de ilhas repartidas por furos e igarapés. Onde esta boa gente se acha dividida deste muitas antigas rivalidades, herdadas de velhas guerrilhas locais e pobrezas importadas de além mar. Sem exagero, o primitivo Marajó foi mata fome de todo mundo e já deu de comer a muita gente... 

O peixe nosso de cada dia, camarão de matapi mais o pirão de açaí, roças de mandioca em quantidade e os gados do rio (peixe-boi, tartaruga e pirarucu). A piracema de peixe do mato foi chamariz e comedia de bandos de aves aquáticas e vários outros predadores: fossem eles rastejantes como a cobra grande sucuriju, andassem sobre quatro ou duas patas... Tal qual o paleo-índio mariscador que aprendeu, por necessidade e acaso, a pescar de gapuia de tanto ver lambança de guaxinim pegando peixe na maré seca no leito de igarapé.



A gapuia será talvez a grande mestra de ofício inventora da Cultura Marajoara cantada em prosa e verso, neste mundo anfíbio onde as águas e o tijuco são inseparáveis. A educação pelo barro dos começos do mundo. Infinita reivenção de ilhas-arcas de Noé ao longo da costa, que seguem a correnteza ao sabor da maré: divisa entre animalidade e humanidade. Pra não dizer, Natureza e Cultura (pela fé da mucura, cá entre nós, que é nome de bicho e de festa improvisada a cabo da faina do dia).






E quando, apesar de tudo, as aldeias da Missão sossegavam dos tormentos iniciais da invenção da Amazônia, lá vem o tal Diretório dos Índios! Dizendo o senhor capitão-general e governador do estado do Grão-Pará e Maranhão que, diz-que, era para liberdade dos índios... escravos dos jesuítas. Todavia as mesmas promessas de liberdade dos índios e o papel histórico da Companhia de Jesus como protetora dos índios fora invocada cem anos antes: aqui a promessa foi quebrada mediante a primeira expulsão dos padres e depois, para retorno ao Pará, conciliação destes últimos com o regime das tropas de resgate (o “descimento” e “redução” dos gentios).



Como diria Voltaire, “o mundo só terá paz quando se enforcar o último rei com a tripas do último padre”... Porém, no caso do Marajó, se não existisse el-rei Dom João IV e padres na capitania-geral do Pará o genocídio teria sido total, atendendo o pedido da Câmara de Belém ao governador do Maranhão e Grão-Pará, mameluco André Vidal de Negreiros, a fim de levar a “guerra justa” (cativeiro e extermínio) à Ilha dos Nheengaíbas. 

Já na segunda expulsão dos jesuítas – não tão inocentes das acusações, segundo historiadores tais como o ponderado João Lúcio de Azevedo –, a declarada liberdade dos índios logo se tornaria descarada servidão em mãos de diretores de aldeias e até mesmo de vigários das freguesias; recrutados apressadamente para substituir os missionários expulsos e recolhidos à prisão em Portugal.



Claro que os cabocos (índios recentemente "extintos" por decreto) já declarados novos súditos portugueses, iguais perante às leis do reino a todos mais súditos da coroa; com a estúpida notícia cairam no mato sem cachorro: caminho do feio é por onde veio... 

E, por isto, a imigração clandestina e o contrabando na rota do Oiapoque também teve forte incremento com o Diretório dos Índios dentre a longa série de acontecimentos históricos, escritos e não-escritos, que costuram as regiões amazônicas às ilhas do Caribe desde tempos imemoriais.



Na luta entre o iluminismo e a escolástica índios, negros e mestiços pagaram o pato, conforme conta Alejo Carpentier, no romance “O Século das Luzes”. Eu acho, ademais, que por conta da 'obra' (sic) do Diretório dos Índios, se acaso existisse vida além túmulo, o primeiro ministro de Dom José I estaria a pé queimando no quinto dos infernos... 

Ou não. Pois, segundo uma santa senhora curandeira em Icoaraci, o Marquês converteu-se no Purgatório das capitanias hereditárias do outro mundo. Agora ele é um espírito de luz montado no "cavalo" mediúnico e trabalha, que nem carola de igreja, numa seara de umbanda lado a lado com caruanas, cabocos de arco e flecha e pretos velhos. Para resgate de sua dívida histórica, cuida ele zelosamente dos destinos da antiga terra Tapuia. Aonde, paresque, queria transferir a Família Real para fundar no Pará o Quinto Império do Mundo, conforme profecias sebastianistas do Padre Antonio Vieira.

Se não é vero, espero que por artes políticas deste e outros mundos ainda seja possível fazer alguma coisa neste sentido, embora a irremediável contradição entre pajelança, jesuitismo e iluminismo não deixe margem à concretude das utopias. Quem quer saber de coerência numa terra onde gente vira bicho e bicho vira gente, plantas mágicas se transformam em guardiões de caminhos e guardadores de casa? Aqui o realismo mágico fez capital.



No mundo pós-moderno já se fala em inventar, na Amazônia "celeiro do mundo" pra variar; uma tal ecocivilização. Mas a gente sabe que ecocivilização existia aqui antes dos civilizados chegar e estragar a ecologia humana com as suas inglezias, matanças e viagens philosophicas, que estão na origem da biopirataria.



Não ria, mano velho, o caso é serio... As esperanças dos Marajós são agora que a gente mesma possa converter, na terra, os malfeitos do diretório pombalino e seus seguidores no “desenvolvimento” insustentável da Amazônia. Como no céu dos terreiros e casas de Mina das populações tradicionais o avatar do Marquês está a dar serviço a fim de curar a estória, sem pé nem cabeça, da “elevação” de antigas aldeias indígenas em vilas e lugares com nomes tirados por acaso de Portugal, tais quais: Aricará (Melgaço), Aracaru (Portel), Maruaru (Curralinho), Aruans (Chaves), Guaianazes (Vilar), Joanes (Monforte), Maruanazes (Soure), Cayá (Monsarás), Jaburuacá (Condeixa) e outros que já não me lembro.



Deste modo, o Homem marajoara por ele mesmo libertado de tantas libertações estranhas, achará caminho para o futuro de seu próprio desenvolvimento humano. Por exemplo, 500 aldeias marajoaras autossustentáveis – como, no passado, aldeias suspensas em tesos sobre campos alagados –, na prancheta dos sonhos, configuram o amanhã da Ciência & Teconologia que precisamos. Por que não?

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